O que bebia e o que não bebia
Eram dois amigos. Grandes amigos de infância. No interior.
Já no ginásio, apesar de continuarem amigos, cada um tinha uma predileção na vida. Um gostava de estudar e trabalhar. E só pensava numa coisa: carros! O outro não gostava nem de estudar, nem de trabalhar. O outro gostava de cerveja. Muita cerveja.
No curso científico, o que gostava de estudar estudava e já trabalhava. Em pouco tempo, comprou um Gordini preto, sensação da época para bolsos ainda não muito polpudos. Passava pelo bar onde o outro estava a beber para exibir a novidade. Acenava, orgulhoso. O outro, que não gostava nem de estudar nem de trabalhar, bebia cerveja. Retribuía o cumprimento, sorrindo, feliz. O amigo estava fazendo o que gostava.
Logo entrou na faculdade, o rapaz do Gordini. Estudava de noite, trabalhava duro o dia inteiro. Foi quando comprou um Fuscão quase zero, vermelho.
Passava pelo bar e acenava. O outro não estudava, não trabalhava. Bebia cerveja. E sorria feliz batucando um sambinha na mesa de lata.
Antes mesmo de se formar - e sempre dando duro -, já havia passado por uma Vemaguete verde, daquelas que abriam a porta ao contrário, um Aero Willys bordô de bundinha arrebitada e, por fim, a grande novidade do fim dos 60, um Fissore da DKW. O outro, nem patinete tinha. Como bebia cervejas, o rapaz!
Formou-se, o outro rapaz, o do Fissore, com as notas as melhores. Montou uma banca de advocacia e logo estava dirigindo um possante Simca Chambord Presidente, todo amarelo com uma tarja branca nas laterais traseiras. O outro? Bebia, é claro.
Nos anos 60 comprou um prateado carro conversível, um Puma e ainda um MP Lafer conversível, fora a Rural para ir à chácara. Cada dia saía com um, para passar em frente do bar. Mostrar ao amigo o progresso. E o amigo lá, já barrigudinho, entornando suas cervejas. Mas nunca deixaram de se acenar, amigos que eram de infância. Um respeitava o outro.
O tempo passou, o que trabalhava já tinha um Monza hidramático com vidros que subiam e desciam num simples dedilhar de botão. Trabalhava muito, é verdade. Mal tinha tempo para a esposa e os filhos. Na fazenda, tinha uma camionete de duas cabines, a última moda. E o amigo dele nem bicicleta para se levantar do bar e voltar para casa.
E trabalhando cada vez mais, conseguiu chegar ao ponto máximo da sua carreira de dono de carro. Foi quando comprou uma Mercedes-Benz que só faltava falar. Tinha botão pra tudo. Tudo "eletronisado". Era o carro dos seus sonhos.
E foi logo no dia seguinte que tal maravilha chegou, que ele resolveu dar uma volta pela cidade. Passou pelo bar, mas o amigo - incrível! - ainda não havia chegado. Saiu pela cidade atrás dele. No primeiro sinal, o amigo, aquele que bebia, pára, dirigindo um reluzente Rolls Royce ao seu lado. E o que tinha trabalhado a vida toda não acreditou naquilo:
- De quem é esse carro? - perguntou o esforçado trabalhador.
- Comprei, cara!
- Comprou como? - indagou incrédulo.
O amigo apenas sorriu e acenou feliz.
- Mas como? - disse com uma certa inveja e um declarado ciúme. Como é que você comprou esse carro, se nunca estudou, se nunca trabalhou, se passou a vida toda bebendo cerveja no bar?
E o amigo, engatando uma azeitadíssima primeira, sorriu e disse:
- Vendi os cascos!
E foi em frente. Em silêncio, como só os Rolls Royces conseguem fazer.